Poesia nas Síndromes
Pércia Maria Galvão
Falar de Policena é imprescindível. 1800, talvez. Uma tataravó vinda da África, que trabalhou numa fazenda em Pindamonhangaba. O romance com um francês de sobrenome Lara, branco de olho azul e cabelo amarelo, lhe nasceu Elisa; de nariz fino e elegante, que morreu em três dias de convulsões na fazenda, envenenada de um doce de abobora oferecido pela vizinha invejosa. Elisa foi mãe de Tereza, que foi mãe de Maria que morou em Itu, Zeca o contador de historias, Dudu que morou em São Paulo, Ana que morou também em Mairinque e Albertina que foi mãe de Pércio, em Sorocaba. Cumpre ressaltar a história de Tereza. Cada filho de um pai, motivo que lhe rendeu a oportunidade de esbofetear um homem que gracejou o fato. Era lavadeira de roupas brancas das madames. Diz-se que um dia, levando a encomenda numa trouxa de roupa alvíssima, com os cinco filhos pequenos ainda, o individuo de cor branca, gracejou o fato. Ela colocou a trouxa na mão da filha mais velha, botou a mão nos quadris e chamou o homem para recomendar que nunca mais ousasse isto. Ensinou-lhe a lição prática da ameaça munida de mãos e pés e assim se fez. Vieram para Sorocaba em Vila Santana, começando outra saga de desventuras. Era 1928. Á Albertina casaram com Flavio, mulato bonito, elegante e mulherengo invicto. Ela gostava de outro, mas seguiu este fluxo da época. Dizia que fizeram amor uma só vez, e desta única vez ficou grávida de Pércio. Trabalhava na tecelagem e do enjoo da gravidez, recomendada pelo médico da fábrica, voltou mais cedo para casa, a tempo suficiente para flagrar em sua cama, o esposo Flavio e uma mulher. Munida de um machado, consagrou o primeiro escândalo social no bairro, fazendo os dois correrem sem roupas e ela de machado em punho, pelas ruas e ruas. Nunca mais o viu. Ele por sua vez, vigiava de alguma forma aquele enredo, pois ressurgiu no casamento aos dezoito anos de Pércio e Joaninha (dezessete). Pércio o conheceu nesta idade. Entre o susto do casamento e encontro com o pai, recebeu dele o presente a viagem ao Rio de Janeiro, para a lua de mel. Depois o pai, sempre vinha quando lhe nasciam os filhos. Ninguém sabia como ele ficava sabendo. Pércio foi criado pela mãe e esteve perto dela até o fim de seus dias. Era um artista maravilhoso, com multitalentos. Era músico, escultor, inventor, desenhista, consertava e construía instrumentos musicais e todo o universo de madeiras, (manejava todos) era um bom amigo e conselheiro, nos últimos tempos... Trabalhou por 35 anos na Estrada de Ferro Sorocabana, na mesma seção em que entrou. Nunca foi promovido sequer a
encarregado da seção. Atravessou a Ditadura dentro da fábrica, Joaninha tinha crises sufocantes de asma e tiveram cinco filhos; quatro mulheres e um homem. Era delicadíssima, filha de uma espanhola e de um bugre. Quando Pércio veio a falecer em fevereiro de 1983 aos cinquenta anos, aconteceu um fato inédito. Seu pai e sua mãe ao lado do caixão, coisa triste de se ver. Flavio então, já viúvo pela terceira vez, fez a proposta a Albertina de ficarem juntos de novo. E assim foi. Voltaram a viver juntos cinquenta anos depois, e Flavio morreu nos braços de Albertina, pulando muitos detalhes. A vida familiar de Pércio junto da mãe foi de cinquenta anos. Seus pais só ficaram juntos, antes e depois de sua vida.
Se não há transformação de historias em poemas, mais perecível ainda seria a vida...
Descobriu-se como se constroem os poemas: os poemas já estão prontos. Ficam no ar a espera de quem os queira, ou veja e sinta todo o tempo. É um poema longo e sem fim. Às vezes triste. Outras; interessante, rico. Às vezes chato e desconfortável. Na maioria das vezes, preciso. Descobrimos isto andando na rua e reparando em todos os detalhes. Ver a vida se esvair a cada dia em cenas fotografadas pelos olhos e pensamentos secretos, integrados na beleza das cores é uma dádiva. Tudo tem uma cor. Era para ser admirado e não desadmirado. A cor traz sensações ótimas. Depende do olhar de quem está compondo.
Está elucidado que a maioria das informações sobre a mulher negra, já se dispõe pelos livros, sites e conversas. Falar-se-á dos pitorescos, da poesia exótica de uma saia laranja numa blusa cinza, na calçada olhando as coisas com aquele andar exclusivo, um jeito especial, invisível no corpo, chamativo nas cores. Um povo desconhecido que vive espalhado no mundo Brasil, uma mistura de bantos, mulatos e bugres em dégradé que assola os lados, que vivem juntos e em paralelo, que chora e que ri. Á mulher negra delegou-se tarefa difícil (como sempre) já não basta a vida à tarja de primitiva, na invasão dos portugueses. Caçadas, açoitadas, estupradas; também vieram os romances com a gente que estava aqui. A humilhação e a violência parecem suscitar na pele negra. À mulher então... A melanina parece transfigurar mais quem está fora dela. Porque quem a tem por dentro tem muitas inspirações. Para o homem jovem, marrom escuro há interesse de força e habilidade e atrativos para alguns serviços.
Para a mulher jovem há interesse serviçal. Há força e beleza não admitida. Não há padrão. As leis vão e voltam. São decretos, leis, cotas. Falemos então da poesia de um povo gracioso: Famílias numerosas, parentes de comportamento original. Manias, costumes, cultura, religião. Cheio de curiosidades que alguns querem saber.
Para quem chamava o povo de raça primitiva, as atrocidades cometidas excederam as fronteiras animalescas. Porque animal é animal. É mais respeitoso. Mas a fera, não. A fera tem seu próprio raciocínio que ninguém ainda compreende. Um desajuste legalizado. Mas gente ignorante dos outros, com poder e sem limites, põem em uso seus mais estranhos sabores. Enquanto na Rússia se assobia para prostitutas. Algumas mulheres e homens negros assobiam enquanto estão trabalhando ou andando. E como são belos... A cor de pele negra recendendo ao sol com saia laranja e blusa cinza... O primeiro homem seria negro? E os outros que vieram em seguida foram desbotando até tornarem-se brancos ou de cor bege? Ou foi o contrario?
Entre os brancos são negros, mas entre os negros são pardos. Entre os pardos são mulatos e entre os mulatos são morenos que podem ser bugres ou índios pretos.
Os negros têm pintas, mas não têm sardas.
Quando se fala da mulher negra, fala-se dos homens também e das crianças, dos jovens e dos velhos. Fala-se da arrumação da casa, dos espelhos, da comida cheirosa.
Fala-se de bater palmas para chamar alguém numa casa, de conversar com um pé na parede, de rir com a mão na boca. De colocar as mãos no quadril quando fica brava. Do movimento dos olhos, do olhar e do movimento imperceptível da boca.
A educação doméstica provém de olhares bem expressivos, desprecisados de outros gestos. As historias contadas, ouvidas com interesse.
Não se sabe se o medo veio do passado ou do futuro. Há muito choro. Há muito riso, risadas. Ser feliz com o pouco, que já é muito em vista do que já foi. Conformismo ou natureza? Imaginemos que os homens se deram a conhecer. Perceberam que se diferenciavam no jeito de olhar as coisas. Depois o pré-julgamento involuntário, agravou a fotografia. Cadastraram os olhos, os cabelos, a cor da pele, o jeito. Criaram-se critérios, valorizou-se em segredo o ziriguidum, e o borogodó e abafaram os defeitos próprios.
A mulher negra é linda. Tem gênio forte, ao mesmo tempo em que é gentil e faceira. Vai da tímida à valente em segundos, sem ser bipolar em nenhum momento. Tem o olhar aguçado o suficiente para saber se é bem-vinda ou não, em qualquer ambiente. Não deveriam ser todos assim?
A situação política e social, não mudou muito. Há muito disfarce e tolerância. Mas sempre que é possível, há ainda humilhação e violência em qualquer lugar.
Estando no Brasil a questão foi de adequação forçada. Apesar do cenário se parecer com a África, não se sabe da questão de inimigos do mesmo povo, negociarem seu trafico para a escravidão. Os portugueses surtaram com as mulheres indígenas e com as mulheres negras. Um misto de perversão e torpeza, medo de amar.
Algemas nos pés, mãos e pescoço. Trabalho, açoite, parto... Nunca foi tratada como mulher frágil, como a branquitude tratava as mulheres. Não se pode generalizar. Algumas mulheres pensavam como Zumbi dos Palmares, outras não. Hoje algumas têm a coragem e valentia, outras a doçura, outras a martirização. Mas existe um encolhimento da estima e da perspectiva.
Quando os negros andam nas ruas, se olham. É uma incógnita. Fala-se muito em discriminação. Há disfarces. Porque uns gostam de azul e outros de amarelo? Porque não se pode gostar do laranja? As cores acendem na pele negra.
A memória cultural ancestral é muito forte. As historias são comuns, apenas desconhecidas. O passado antigo foi terrível. O passado novo, triste. O presente encolhe perspectivas. Poucos por cento de mulheres estudam. Mas tem o mercado de trabalho. Difícil ficar sem ser cerceada por algum motivo espetacular. Mas ainda assim, viver como estrangeira nem no Brasil nem na África. Mulheres africanas passam fome. Mulheres brasileiras podem temperar com cebolas a pior comida. Parece a mulher negra, uma semente que germina na trinca do asfalto...
E se enlaçam no rosário de mil qualidades, entre o fator motivador na exploração de oportunidades. A questão da mulher negra como serva residencial e algumas agora consideradas como liberta do universo machista branco e preto, ainda não pode ser amplamente competitiva no mercado de trabalho. Há ainda a questão da criança.
A mãe trabalha e a criança hiberna no período integral até o ensino. O período mais importante da criança pequena junto à mãe é um fio tênue de educação sobre o preconceito e o medo. Há perigo fora da casa.
Na gama de conflitos apresentados e não previstos nas estruturas familiares, criam-se sonhos em vão. Alguns se realizam, a duras penas, sendo o fator motivador na exploração de oportunidades. A sociedade é multirracial, não há como negar agora que já se misturou todas as cores. Devolver a qualidade que é de direito, é que é meio impossível. Assim como temos fé que os homens um dia parem de comer faisão por um capricho apenas e descubram que o faisão está para enfeitar o mundo, e encher de prazer a quem o vê e não para
ser comido, assim esperamos que um dia se quebrem todas as correntes usadas para desumanizar as pessoas, independente de sua cor ou encolhimento. É uma esperança, de que seja a mulher negra, de currículo sofrido quem venha despertar o mundo para a poesia que existe no caminhar da vida de todos. Cabe a ela. Quiçá.